
Quase todos os dias, vejo-a varrendo a Avenida das Torres, em Curitiba. Totalmente indiferente ao tráfego intenso da via, lá está ela, tranquila e distante. a os dias na tentativa de tirar a poeira daquele trecho que, pra ela, deve ser uma extensão de casa. Tudo indica que faz parte da comunidade de pessoas em situação de rua que ocupam aquela região, uma das cracolândias da cidade sustentável.
Observo-a de longe, sua dança entre os carros, a coreografia ensaiada de quem conhece o ritmo da rua melhor do que qualquer motorista apressado. No improviso de sua vassoura, há algo que quase parece pertencimento – a tentativa de organizar um pedaço do mundo que lhe resta. Mas o mundo não a enxerga.
Não faço ideia do seu nome. Talvez ninguém ali saiba. É possível que nem ela mesma ainda se recorde dele.
Deve ter uns trinta e poucos anos. É difícil dizer com precisão, porque o tempo, pra quem dorme na calçada, corre de outro jeito. Não envelhece: apaga. Cada dia leva um pedaço, um traço, uma linha do rosto que talvez já tenha sido bonito.
Ela circula com seu corpo magro e cheio de marcas. O jeans frouxo, preso por um barbante improvisado, e a blusa manchada que, um dia, foi branca. Nos pés, chinelos de pares diferentes. Parece falar sozinha enquanto contribui com a limpeza da cidade, talvez contando pro vento os pedaços de uma história que ninguém mais escuta.
Entre buzinas, freadas e barulho de pneus, ela continua empenhada em seu ofício diário. Nunca a vi abordar ninguém. Fico pensando que deve se contentar com muito pouco: um isqueiro, um pedaço de pedra e um pouco do esquecimento que só o cachimbo oferece. E então volta ao estado líquido. Dissolve-se no asfalto, na pressa dos que desviam dela, na política pública que só aparece quando há eleição.
Eu me pergunto se, à noite, quando os carros silenciam e as luzes da cidade piscam como um último aviso, ela ainda sonha. E, se sonha, qual rosto vê quando dorme: o dela de agora ou o de antes, quando ainda tinha nome e sobrenome, um F produtivo e até mesmo uma conta bancária.
Os motoristas buzinam, alguns xingam. A cidade, que se orgulha do planejamento urbano e dos parques impecáveis, varre-a como poeira para os cantos onde ninguém olha. Os olhos desviam, as janelas sobem. Quem pode, a rápido. Quem não pode, finge que não a vê. Ela não perde a cadência.
Seus gestos são metódicos, um ritual estranho para um templo que só existe pra ela. Já ouvi dizer que os dependentes químicos se apegam a pequenas rotinas – um jeito de manter os pés no pouco de realidade que ainda lhes pertence. Talvez seja isso. Ou talvez seja só uma mania que ficou de um tempo antes do crack, de quando ainda tinha uma casa pra cuidar. Olhando assim, parece que varre um ado inteiro.
Mas há um momento em que a vassoura para. O olhar se perde. A mão, já calejada, procura no bolso algo que já não está lá. Bate a fissura. A pressa. O tremor nas pernas.
Sai em busca de um resto de cigarro no chão, um isqueiro emprestado, um favor em troca de nada. Quando consegue, encolhe-se num canto qualquer, os olhos brilham por dois segundos. Então, apagam-se outra vez. Entra em estado líquido.
O semáforo abre, preciso seguir em frente. Mas ela permanece na minha cabeça. Crio uma história própria sobre “a gari voluntária da Avenida das Torres”. Queria saber quem sente sua falta. Na minha imaginação, tenho a certeza de que há alguém esperando sua volta. Só ela não sabe mais disso.
Danielle Blaskievicz é jornalista, empresária e tem o hábito de inventar histórias pras pessoas que cruzam seu caminho.